Alguém
insistente batia a porta. Aquilo o incomodava de tal maneira que saiu de seu
banho e fora atender, alguma irritação pairava sobre seu rosto, estava se
sentindo tão desalinhado com a vida e tudo o irritava facilmente, respirara
fundo, o mais fundo que podia, sabia que a culpabilidade estava em si, na
maneira de lidar com as coisas e com o próprio mundo.
–
Pois não? – a voz era terna, porém certa frieza e amargura, descompasso
notável. – Me esqueceu em algum momento da sua vida, agora estou cá para
habitar contigo, se me permitir sentar – se aconchegou como pode -, e estarei
contigo em seus piores momentos, retorno a promessa que fiz e de maneira áspera
quebraste comigo, mas não faz mal, esqueçamos o passado, estou tão ansiosa para
ouvi-lo, por favor não se culpe se interrogue, sempre foi um esmero no ato de
se auto-interrogar.
Seu
coração se esfriara no momento que ouviu essas palavras, um vento gélido
enrubesceu sua face, não se via, mas imaginara a imagem que de certo produzira
ao ver ali diante de si alguém que veementemente pedira para lhe deixar, ir
embora e lá estava novamente a ressoar palavras tão racionais e sinceras, a sua
frente, a abrir-se com tamanha destreza.
Resolvera
então deixá-la entrar, a timidez lhe percorrera, havia há algum tempo mandado-a
embora e agora voltara assim, demonstrara uma simpatia incrível e a ausência completa
de remorsos, podia sentir que não havia ali naquela fala, na cena que se descortinava
qualquer resquício de amargura, rancor, esses sentimentos que percorrem os
seres mais sensíveis.
O
primeiro ato se desenrolara com facilidade, passado evidentemente o susto e a
vergonha instantânea que lhe percorrera. Sentaram-se, de prontidão ela lhe soou
com docilidade: - não se incomode sempre me encaixei perfeitamente em qualquer
lugar na sua casa, seja aqui, onde moras realmente durante todo o ano, no seu
trabalho, sempre sempre sempre estive contigo, agora me responda acha que te
atrapalho ou lhe atrapalhei?- Seu rosto se encheu de uma fúria incerta que se
folgou em si e despejou em sua fala – me perguntas se me atrapalhou? Talvez por
conviver tanto contigo já não saiba conviver com outras pessoas, a lida cotidiana
com pessoas assim como eu não é fácil, sabes bem que não sou maleável,
flexível, cada vez mais me torno desconfiado das pessoas, me questiono todos os
dias, a todos os momentos em relação ao comportamento dos outros para comigo,
você parece uma cicatriz gigante impregnada em cada parte do meu corpo, alguns
mais instintivos conseguem observar-te em mim me deixando encabulado, vacilante
no meu falar, no comportar, como pensa que não me atrapalhou? - Como se
esperasse essa pausa e a pergunta logo após o desabafar, ela com tamanha
delicadeza no gesto, se inclinou e começou a tear suas palavras – estive
contigo durante anos a fio, a ver-te envelhecer e não me comovias, convenhamos
sempre optou por crescer e isto demanda tempo e marcas, quando ficavas sozinho
querendo fugir do mundo, que sabemos bem o que denominas como mundo nada mais é que as pessoas que o
habitam, em certos momentos detestava até a presença de seus pais tal era sua
ambição, de momento, para se isolar, e quem estava contigo, preste atenção no
que digo c-o-n-t-i-g-o, não estou a lhe cobrar nada, nem mesmo a jogar sobre
seus ombros uma dívida que tenha que ser paga algum dia, não!, jamais
ambicionei nada disso, além de seu próprio crescimento, quem respondia suas
perguntas, quem te acalentava quando chorava em algum filme, não haviam
motivos, porém suas lágrimas estavam tão acumuladas que jorravam num simples
mirar de uma cena colorida ou nalgum ato de carícias, pois saiba: todas as
perguntas foram respondidas pelo seu próprio ser, todo esse conhecimento que
tens é teu, aprendeste sozinho no decorrer do tempo, evidente que com a minha
companhia ao seu lado e por que agora resolve me sentenciar como causadora das
suas maiores percas, dos seus desatinos e infortúnios? Agora quem faz as
perguntas sou eu e espero respostas sinceras!
A
cada frase entoada ali em sua frente, ele que já estava exausto se afundara em
seu acento, um sofá velho, empoeirado na sala, a refletir, a rebobinar a
película que o levaria até o âmago de suas lembranças, realmente sentira falta
na época dos seus estudos daquela presença, só a encontrava quando se isolava
de todos, entrava em seu quarto assistia a algum filme e suas lágrimas
realmente vinham a tona, lembrando-o que existia dentro de si uma função de
emocionar-se. Sempre fora, como dito, alguém que se questiona demasiado e
pensara que isso o levava a sofrer, por diversas vezes se achava masoquista,
devia sentir algum prazer naquela sensação que o percorria de tal forma que ia
até as últimas conseqüências para passar por aquilo: o sentir, agora aprendera a lidar com o sofrimento, não podia
controlá-lo tarefa que, ao menos a si, é impossível.
Sem
mais poder pensar dissera: - realmente tens razão, vejo tantas pessoas
desencantadas com algumas pequenas vitórias que se acumulam no pequeno pecúlio
humano, essa falta de gana para viver a vida que por si só já é enfadonha,
medonha, porém melhor ser do que não ser, vê-la aqui novamente comigo me remete
a Nietzsche sobre o eterno retorno,
parece que as cenas se repetem, algum dedo apertou o botão de rebobinar e cá
estamos, você diante de mim e eu a reconhecendo, como pode?
Pela
primeira vez ela pausou e sem delongas respondeu: - eu sempre estou contigo,
não percebes? Me faz questionar quando me recusas, não tens idéia do quanto me
faz pensar, fico imersa no refletir é quase uma aura que me cerca, exatamente
pelas suas atitudes, quando menos espero forças tudo que se move dentro de si
para me expelir, para me expulsar do seu convívio, não vês que fico sempre a
espreita a te esperar, esperar, esperar, e-s-p-e-r-a-r, hoje pode me responder
sem mentiras, pois vejo mais do que nunca resplandecer em você aquela
sinceridade amarga, ácida, é tão complicado conviver comigo?
Waldomiro Mugrelise |
Realmente
estavam sendo sinceros um com o outro, como nunca haviam tentado, pensou acerca
disso rapidamente e lhe respondeu na lata – Sim. No início me sentia preso a
ti, era desconfortável, me causava certa dor no peito, pensava que era por
causa do cigarro e minha descontrolada rotina, o passar do tempo me indicou que
talvez fosse sua presença mesmo a me causar insônia, um mal-estar contínuo que
carregava comigo. Depois de alguns insucessos devido a minha imaturidade, que
me acometia em momentos impróprios, mas essa parte eu ainda não compreendo
totalmente, entendi que você era a única que realmente me amava, tinha comigo
uma espécie de doença: egocentrismo, que de maneira geral não me era saudável,
percebia que docemente conseguia enxergar meus detalhes, o olhar, as conversas
que mais pareciam um monólogo e o eram, mas eu comandava, fazia as
brincadeiras, perguntas e dava as respostas, a minha maneira, do meu modo,
então comecei a te reparar melhor, seu modo de me tocar, emocionar, porém essa
última paixão foi quase um grito que deveria ser dado, então te expulsei, mas
vejo que não preciso nem pedir perdão, pois esta tão serena.
Sabia
que suas palavras poderiam e podem se tornar obtusas. Conversaram
incansavelmente, não percebiam as horas que corriam por sobre suas cabeças,
corpo, rosto, simplesmente iam, escorriam, assim ficaram durante um bom tempo,
até que o sono o abateu, o embriagou de tal maneira que recostou sua cabeça em
seu colo, docemente ela com sua delicadeza, que era sinal da conquista dele
através do tempo mexeu em seus cabelos, ambos acordavam juntos, dormiam juntos,
comiam, bebiam vinho na varanda a chorar, rir, sempre ele acompanhado dela,
assim não tiveram mais medo de conviverem juntos, pois um sabia como absorver
do outro o gesto, a palavra ideal. Ele nunca mais teve medo da solidão, pois o
dia em que decidiu sair atônito do banheiro, quase que para blasfemar com
aquela que batia a porta, abriu e deu de cara com a própria Solidão, que espontaneamente decidiu
deixá-la entrar e ao contrário do que muito se diz por ai, nesse mundo do qual
ele evita por vezes, ele dizia e sentia, e podia dizê-lo em bom tom: sou feliz
com a minha só m-i-n-h-a Solidão!