domingo, 15 de abril de 2012

En(lace)


Alguém insistente batia a porta. Aquilo o incomodava de tal maneira que saiu de seu banho e fora atender, alguma irritação pairava sobre seu rosto, estava se sentindo tão desalinhado com a vida e tudo o irritava facilmente, respirara fundo, o mais fundo que podia, sabia que a culpabilidade estava em si, na maneira de lidar com as coisas e com o próprio mundo.
– Pois não? – a voz era terna, porém certa frieza e amargura, descompasso notável. – Me esqueceu em algum momento da sua vida, agora estou cá para habitar contigo, se me permitir sentar – se aconchegou como pode -, e estarei contigo em seus piores momentos, retorno a promessa que fiz e de maneira áspera quebraste comigo, mas não faz mal, esqueçamos o passado, estou tão ansiosa para ouvi-lo, por favor não se culpe se interrogue, sempre foi um esmero no ato de se auto-interrogar.
Seu coração se esfriara no momento que ouviu essas palavras, um vento gélido enrubesceu sua face, não se via, mas imaginara a imagem que de certo produzira ao ver ali diante de si alguém que veementemente pedira para lhe deixar, ir embora e lá estava novamente a ressoar palavras tão racionais e sinceras, a sua frente, a abrir-se com tamanha destreza.
Resolvera então deixá-la entrar, a timidez lhe percorrera, havia há algum tempo mandado-a embora e agora voltara assim, demonstrara uma simpatia incrível e a ausência completa de remorsos, podia sentir que não havia ali naquela fala, na cena que se descortinava qualquer resquício de amargura, rancor, esses sentimentos que percorrem os seres mais sensíveis.
O primeiro ato se desenrolara com facilidade, passado evidentemente o susto e a vergonha instantânea que lhe percorrera. Sentaram-se, de prontidão ela lhe soou com docilidade: - não se incomode sempre me encaixei perfeitamente em qualquer lugar na sua casa, seja aqui, onde moras realmente durante todo o ano, no seu trabalho, sempre sempre sempre estive contigo, agora me responda acha que te atrapalho ou lhe atrapalhei?- Seu rosto se encheu de uma fúria incerta que se folgou em si e despejou em sua fala – me perguntas se me atrapalhou? Talvez por conviver tanto contigo já não saiba conviver com outras pessoas, a lida cotidiana com pessoas assim como eu não é fácil, sabes bem que não sou maleável, flexível, cada vez mais me torno desconfiado das pessoas, me questiono todos os dias, a todos os momentos em relação ao comportamento dos outros para comigo, você parece uma cicatriz gigante impregnada em cada parte do meu corpo, alguns mais instintivos conseguem observar-te em mim me deixando encabulado, vacilante no meu falar, no comportar, como pensa que não me atrapalhou? - Como se esperasse essa pausa e a pergunta logo após o desabafar, ela com tamanha delicadeza no gesto, se inclinou e começou a tear suas palavras – estive contigo durante anos a fio, a ver-te envelhecer e não me comovias, convenhamos sempre optou por crescer e isto demanda tempo e marcas, quando ficavas sozinho querendo fugir do mundo, que sabemos bem o que denominas como mundo nada mais é que as pessoas que o habitam, em certos momentos detestava até a presença de seus pais tal era sua ambição, de momento, para se isolar, e quem estava contigo, preste atenção no que digo c-o-n-t-i-g-o, não estou a lhe cobrar nada, nem mesmo a jogar sobre seus ombros uma dívida que tenha que ser paga algum dia, não!, jamais ambicionei nada disso, além de seu próprio crescimento, quem respondia suas perguntas, quem te acalentava quando chorava em algum filme, não haviam motivos, porém suas lágrimas estavam tão acumuladas que jorravam num simples mirar de uma cena colorida ou nalgum ato de carícias, pois saiba: todas as perguntas foram respondidas pelo seu próprio ser, todo esse conhecimento que tens é teu, aprendeste sozinho no decorrer do tempo, evidente que com a minha companhia ao seu lado e por que agora resolve me sentenciar como causadora das suas maiores percas, dos seus desatinos e infortúnios? Agora quem faz as perguntas sou eu e espero respostas sinceras!
A cada frase entoada ali em sua frente, ele que já estava exausto se afundara em seu acento, um sofá velho, empoeirado na sala, a refletir, a rebobinar a película que o levaria até o âmago de suas lembranças, realmente sentira falta na época dos seus estudos daquela presença, só a encontrava quando se isolava de todos, entrava em seu quarto assistia a algum filme e suas lágrimas realmente vinham a tona, lembrando-o que existia dentro de si uma função de emocionar-se. Sempre fora, como dito, alguém que se questiona demasiado e pensara que isso o levava a sofrer, por diversas vezes se achava masoquista, devia sentir algum prazer naquela sensação que o percorria de tal forma que ia até as últimas conseqüências para passar por aquilo: o sentir, agora aprendera a lidar com o sofrimento, não podia controlá-lo tarefa que, ao menos a si, é impossível.
Sem mais poder pensar dissera: - realmente tens razão, vejo tantas pessoas desencantadas com algumas pequenas vitórias que se acumulam no pequeno pecúlio humano, essa falta de gana para viver a vida que por si só já é enfadonha, medonha, porém melhor ser do que não ser, vê-la aqui novamente comigo me remete a Nietzsche sobre o eterno retorno, parece que as cenas se repetem, algum dedo apertou o botão de rebobinar e cá estamos, você diante de mim e eu a reconhecendo, como pode?   
Pela primeira vez ela pausou e sem delongas respondeu: - eu sempre estou contigo, não percebes? Me faz questionar quando me recusas, não tens idéia do quanto me faz pensar, fico imersa no refletir é quase uma aura que me cerca, exatamente pelas suas atitudes, quando menos espero forças tudo que se move dentro de si para me expelir, para me expulsar do seu convívio, não vês que fico sempre a espreita a te esperar, esperar, esperar, e-s-p-e-r-a-r, hoje pode me responder sem mentiras, pois vejo mais do que nunca resplandecer em você aquela sinceridade amarga, ácida, é tão complicado conviver comigo?
Waldomiro Mugrelise 
Realmente estavam sendo sinceros um com o outro, como nunca haviam tentado, pensou acerca disso rapidamente e lhe respondeu na lata – Sim. No início me sentia preso a ti, era desconfortável, me causava certa dor no peito, pensava que era por causa do cigarro e minha descontrolada rotina, o passar do tempo me indicou que talvez fosse sua presença mesmo a me causar insônia, um mal-estar contínuo que carregava comigo. Depois de alguns insucessos devido a minha imaturidade, que me acometia em momentos impróprios, mas essa parte eu ainda não compreendo totalmente, entendi que você era a única que realmente me amava, tinha comigo uma espécie de doença: egocentrismo, que de maneira geral não me era saudável, percebia que docemente conseguia enxergar meus detalhes, o olhar, as conversas que mais pareciam um monólogo e o eram, mas eu comandava, fazia as brincadeiras, perguntas e dava as respostas, a minha maneira, do meu modo, então comecei a te reparar melhor, seu modo de me tocar, emocionar, porém essa última paixão foi quase um grito que deveria ser dado, então te expulsei, mas vejo que não preciso nem pedir perdão, pois esta tão serena.
Sabia que suas palavras poderiam e podem se tornar obtusas. Conversaram incansavelmente, não percebiam as horas que corriam por sobre suas cabeças, corpo, rosto, simplesmente iam, escorriam, assim ficaram durante um bom tempo, até que o sono o abateu, o embriagou de tal maneira que recostou sua cabeça em seu colo, docemente ela com sua delicadeza, que era sinal da conquista dele através do tempo mexeu em seus cabelos, ambos acordavam juntos, dormiam juntos, comiam, bebiam vinho na varanda a chorar, rir, sempre ele acompanhado dela, assim não tiveram mais medo de conviverem juntos, pois um sabia como absorver do outro o gesto, a palavra ideal. Ele nunca mais teve medo da solidão, pois o dia em que decidiu sair atônito do banheiro, quase que para blasfemar com aquela que batia a porta, abriu e deu de cara com a própria Solidão, que espontaneamente decidiu deixá-la entrar e ao contrário do que muito se diz por ai, nesse mundo do qual ele evita por vezes, ele dizia e sentia, e podia dizê-lo em bom tom: sou feliz com a minha só m-i-n-h-a Solidão

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