quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Depois de Kafka

Luise Weiss

“Queria primeiro levantar-se, calmo e sem perturbação, vestir-se e sobretudo tomar o café da manhã, e só depois pensar no resto, pois percebia muito bem que, na cama, não chegaria, com suas reflexões, a uma conclusão sensata.”
(Franz Kafka, A Metamorfose)
Mais do que nunca lhe tornara necessário abrir aquelas correspondências que se iam acumulando sobre sua mesa. Um sentimento de desdém o invadia sempre que as olhava de canto de olho; sabia possivelmente que ali poderiam estar contidos compromissos inadiáveis, novas responsabilidades, telefonemas futuros com os quais, só ao ler, se comprometeria. Surgia daí o sentimento de revolta diante daqueles envelopes amontoados.
Passara-se um mês e alguns dias; seus sentimentos ainda confusos, situações incontáveis vividas durante esses últimos dias, aventuras inclassificáveis e compromissos inadiáveis. Provavelmente, teria que reassumi-los; esperava somente a razão retornar para enfim o jovem que sempre fora ressurgir – ou o prenúncio de um adulto, ainda que seu rosto mantenha algumas manchas de espinhas e outras a lhe enfeitar a face.
Somava a suas experiências mais um livro lido. Depois de tanto tempo, conseguiu ler algo que o deixasse satisfeito; retornara à literatura, deixara aquelas leituras cansativas e metódicas de lado, ao menos por alguns dias; limitados, porém raros.
Suas dúvidas ainda não se dissipavam; ao invés disso, aumentavam, se multiplicavam e tornavam uma avalanche em seu ser, que agora repousava numa paz indizível, incompreensível. Acostumara-se a viver intensamente as ondas do vai e vem do amor, pensou.
 Cheio de veleidades, suspirava calma e paulatinamente à espera do sono que embriagasse seus pensamentos. Entender sobre si, um estranho, um tripulante em alto mar bravio, gerava-lhe o cansar.
Suas vontades, quais? Não eram satisfeitas; seria ilusório acreditar na possibilidade de um dia satisfazê-las por completo, pois o normal do ser é sempre almejar com voracidade o ter. Queria se prolongar na viagem que é desmembrar-se mostrando a todos o seu entender sobre si mesmo, apesar de estar confuso, assim como neblina em plena manhã, quando nada se pode enxergar com exatidão e o olhar confuso capta somente o branco. Talvez a síntese de si fosse o branco; as cores neutras que tanto lhe agradavam não faziam mais sentido, então simplificaria seu estado normal em o branco e a busca por um sentido maior. 
Cruzara as pernas, estufara o peito inclinando a cabeça para trás, em um gesto único, frenético, para tragar o máximo de ar que pudesse; quem sabe, ao oxigenar o cérebro, tudo fluiria ou se dissiparia na névoa que circundava seus pensamentos. Ressoaram em voz rouca e pouco audível palavras sem nexo. Suas pernas brancas ficaram à mostra. Mais uma vez pensara insistentemente no branco irritando-o. Fazendo um gesto brusco ao levantar-se definitivamente, abriu a janela de seu quarto para alcançar uma visão menos perturbadora que a sua própria presença leve e vazia. 
Não se sentia capaz de prosseguir relatando suas sensações íntimas, enumerando-as; não queria se confundir na linha do pessoal e público; acabaria por violar os limites em algum momento... Sentiria incômodo ao fazê-lo, porém sabia que, se o fizesse, seria natural, como todos os seus erros. Ele os cometia para depois ter noção da dimensão dos seus atos.
O que há algum tempo não sentia voltava a sentir fortemente: que todo seu fazer para decodificar a vida era em vão, pois, ao tentar expressar-se, acabava mal interpretado. Ócios do simulacro.
Amanhã é o futuro? Mas tudo se resume no hoje. Como pensar em escrever sobre dias melhores em outro que não o hoje?

Um comentário:

  1. "Fazendo um gesto brusco ao levantar-se definitivamente, abriu a janela de seu quarto para alcançar uma visão menos perturbadora que a sua própria presença leve e vazia."; "Como pensar em escrever sobre dias melhores em outro que não o hoje?"

    Maravilhoso.

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