segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A rotina do Sr.º Sono

Boris Kossoy
Preparara-se para dormir como habitualmente fazia. Todos, com o tempo, criam rituais para o momento de se deitar e com ele não era diferente. Logo após se olhar no espelho e notar suas olheiras, que outrora lhe disseram serem profundas ficou a pensar por alguns minutos ente sua imagem refletida no espelho, se seria cansaço, tempo ou apenas algo genético, de imediato afastou tal pensamento e tentou se fixar no ritual: escovar os dentes e se aprontar para dormir. Ao entrar no quarto, organizou sua cama como de costume, vestiu sua roupa própria para deitar-se e apagou as luzes. Sempre refletia muito no escuro – desde pequeno - habituara há ficar alguns minutos a retroceder no seu dia ou na sua semana, nos dias mais conturbados simplesmente dormia, porém estava disposto a ficar deitado a imaginar o futuro que planejava tão ansiosamente, o que lhe parecia perigoso, pois o destino por vezes é implacável.
Logo sentiu um aperto no peito, tentou afastar a ideia e a imagem que tinha se tornado comum nos últimos dias sendo-lhe insuportável a ideia de se centrar num ser que sumira de sua vida, sem deixar nenhuma explicação plausível. Concordava consigo: algo intenso quando o toca, mesmo que por apenas dois dias o deixava nesse estado de imersão, não sabia bem se era sobre si ou sobre o mundo. Como pudera deixar se envolver a tal ponto? Um bom questionamento sem resposta. Entregara-se de uma maneira tão sem reservas que lhe sobrara apenas a última alternativa – que era repetido diversas vezes – tomar suas pílulas e tentar por fim esquecer. Sabia bem que não esqueceria, mas sentia que ao menos amenizava a dor, essa tão estranha, atípica, o envolvia a noite e não lhe largava, a solidão que estava tão aceita agora estava prestes a lhe mover para a loucura do nada. Quando chegamos perto do nada o mundo fica mais confuso, sem cores, motivação, e o que mais lhe preocupava era toda a falácia que propagava aos seus amigos próximos, se sentia um completo cretino por não seguir seus próprios conselhos dados.
O cheiro que ficara no lençol que os envolveram no último encontro desapareceu, inutilmente pegou e o segurou firme a apertar com suas mãos levando ao seu nariz, a respirar fundo e dando tragadas fortes para tentar encontrar ali algum resquício do cheiro misturado dos dois corpos, lembrava que somente si gozara, quando perguntara entre sussurros e escuridão se o corpo a sua frente queria gozar recebeu como resposta uma negativa. Talvez ali houvesse sentidos que escapavam de sua compreensão, talvez ali residisse o erro fatal do qual não deveria ter cometido. Provável que tenha se adiantado em algo que demandaria calma e paciência, para que acontecesse no momento mútuo de aceitação.
Percebera a tamanha tolice que o levava a pensar em tudo isso. Se ao menos seus pensamentos tivesse o poder de invadir a mente de quem era o causador de toda essa euforia melancólica se sentiria mais satisfeito, pois estariam conectados de alguma forma. Novamente tentou balbuciar algumas palavras, que na verdade para si era uma oração, só não sabia se se referia a algum deus ou ao tempo. Qual será o acordo que vamos chegar desta vez? – perguntara pra si, só conseguia concluir que não se deixaria mais se envolver, não iria se entregar, deixaria apenas a volúpia o inflamar, nada mais do que prazer, assim se sentiria importante, especial na vida de quem o engolisse em noites quentes, preferia o calor pois aumentava o suor e os corpos poderiam colar gerando a sensação de que o momento seria eterno, talvez o fosse – gesticulou com as mãos e em voz audível – eterno o momento que os lábios se colam e que com a saliva deslizam de um lado ao outro, um na boca do outro, a dividir e se unirem, a sentir a respiração e a tragar o mesmo ar.
Antes de se entregar ao sono falou sozinho: - só cometi um erro, não fotografá-lo dormindo comigo, assim teria aquele momento para sempre na ilusão de uma fotografia.
Painter Marta Hegemann, ca 1925 -by August Sander

Esquizofrenia: Grupo de distúrbios mentais que, basicamente, demonstram dissociação e discordância das funções psíquicas, perda de unidade da personalidade, ruptura de contato com a realidade.[1]

Cada um de nós, alguns a ir outros a vir se encontram na estação, somos ilhotas a nos mover para outras que talvez possam nos preencher, trazendo alguma novidade na mesmice habitual.
O sol que se furtava se apresentou irritante; os vestígios deixados pela chuva de outrora absorvidos pela luz que reflete fortemente sobre a terra.
Assim se acumula a vida nos poros, rosto, corpo e alma que transborda sentimentos tão variáveis quanto às cores que nossos olhos podem captar. Tão incerta é a alegria, visita-nos dia sim, dias não, as mãos dadas caminham a tear refrões para quebrar o gelo dos corações que se aproximam, chocam e seguem. As cenas poderiam transitar facilmente como nos filmes, com várias categorias: ação, drama, terror e etc. talvez seja a vida um filme. Se assim o for o roteiro é incerto e a categoria duvidosa.
A transitar no real essa cidade nos engole, a vontade se choca com o promiscuo tão difundido e comum. Não há ai o estranhamento e sim a perda da expectativa. Busca do sentir insano, que se configura naquele pulsar de vida a qualquer custo, provavelmente o cigarro lhe faz sentido quando pensa sobre a busca, seu corpo se sente tão oco ao ponto de preenchê-lo por fumaça, ciente que a mesma é expelida.
As vozes que o cercam na rua falam sobre o nada que é a sua vida e a vida de quem emitem esses sons audíveis.
Os carros com a velocidade passam por si, pelas ruas e seguem algum destino, ponto de encontro, a ausência rodeia a todos que há essa hora estão a procurar desesperadamente algo indistinto. Outros se satisfazem com as imagens, luz e a voz que saem das suas televisões, no final todos estão ausentes na loucura que é a falta de sentido: a vida; a procurarem o eu que em algum momento se chocou com outro e se perdeu. Melhor a perda de sentido que a certeza inocente, que como damas-da-noite espalham um frescor inebriante que confunde os sentidos. Melhor a solidão pesada, que a certeza de ter ouvidos a lhe escutar. Melhor o caminhar do que a velocidade a sucumbir o contato.
Estamos de algum modo, conectados e desconectados na cegueira que se apodera de nós.


[1] Miniaurélio

Desconhecidos

Days Day - Man Ray

O que os separavam? – indagou-se por longos dias de uma semana de descanso. Colocava-se sempre a fumar seus cigarros no corredor da casa, próximo a lavanderia, certamente saberia responder a sua inquietante indagação: uma parede, exatamente! aquele muro plantado no final do corredor que os separavam. Podia ouvir suas conversas com os amigos que lhe visitavam, suas canções tiradas ao violão, com dedilhados fortes, uma voz macia e calma, as músicas de Bob Marley a romper o tédio das tardes, lembrava até – e nesse momento ruborizava – um orgasmo que alheio ouvira dele com alguma mulher, o som alto dos corpos a sentirem um intenso contato um com a pele do outro, os gemidos que se sucederam de forma cada vez mais rápida, até gozarem vida e a gargalhada final – habitual dos corpos que gozam e se sentem plenos.  Acreditava até na hipótese de ter sentido de leve o cheiro de maconha. Interessante era observá-lo sem vê-lo.
Não lhe era inegável a vontade que surgia de quebrar esse muro e ver por fim o que se escondia de seus olhos. Não era um desejo carnal, que o desconhecido lhe despertava em raros momentos, e sim a idéia inaceitável que dois seres que poderiam se aproximar e conversar estavam separados por uma inútil convenção ou pelo muro. Talvez até soubesse quebrar o gelo monótono que assaltam as pessoas desconhecidas quando se esbarram. Sabia, porém que tal ocasião inesperada não viria a acontecer, como tantas outras que só passam de um pensamento-flerte.
Dentro de si, as coisas se moviam de forma estranha, uma parte sua desejava avidamente se esconder de todo o mundo, isolar-se numa completa solidão e a outra de conhecer o máximo de pessoas que lhe fosse possível e absorver tantas quantas histórias pudesse.
De certo haveria, entre marte, júpiter, saturno, algum lugar reservado para aqueles que querem se isolar de todos, ficar só a admirar o universo, desolados e desiludidos com qualquer forma de contato-afeto-amor, talvez fosse essa a vontade que imperava e a mais latente. Regressar a si deveria trazer-lhe calma e trazia, mas a vontade de estar, viver só era intensa e suficientemente maior em si.